Regina Célia é escritora, formada em Letras, membro da AMULMIG _ Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, autora dos Livros Gangorra e Ad versos, alem de crônicas publicadas em jornais e em posts.

domingo, 13 de outubro de 2013

Manias de Velhos





Velhos costumes, velhas manias, manias de velhos... Isso é comum em cidades do interior. Na minha cidade era comum! Uma cidade pequena, incrustada num vale mineiro entre as Serras do Espinhaço.

O solo de minério de ferro e ouro, pouco propenso ao cultivo agrícola, mas de forte apelo minerador atraiu, desde a sua fundação, os olhares ávidos de enriquecimento das grandes empresas.

A cidade que era pacata e ordeira fervilha em uniformes variados, em rostos desconhecidos, em sotaques típicos de terras distantes...

Os velhos costumes deram vez aos modismos e à modernidade. As ruas de casas baixas vão cedendo às construções verticais que também tomaram conta dos quintais. Já não há mais pomares, gangorras, forno de barro para assar quitandas...

Trapoeirabas, aguapés, lixo e esgoto se acumulam no Córrego São Miguel e no rio são João, cujas poucas águas escoam em pequeno leito lodado e deixam para trás o mau cheiro e a vã ilusão de vida.

As noites, outrora perfumadas de madressilvas e damas da noite, outrora salpicadas de estrelas, outrora embaladas por violões e serenatas não mais comportam contemplações e o silêncio dos que dormem é substituído por roncos de motores e sons automotivos.

Ainda outro dia, em conversa com Patrícia Fernandes, dizia-me ela sobre o desrespeito dos motoristas na velha rua Dr. Moura Monteiro. Lá, os velhos e seus velhos costumes de se deitarem cedo são aterrorizados pelos carros e seus funks horrorosos que perturbam até a surdez da terceira idade, são ameaçados pelos “pegas” e “rachas” noturnos, que  a qualquer momento podem vitimar os moradores dentro da própria casa.

Quem são esses seres assustadores que roubam a paz dos velhinhos? São filhos de quem? Filhos de onde? Teriam porventura, pais e avós? Por que  a policia não coíbe tais transgressões?Que mecanismos podem ser acionados para que a segurança e os direitos dos cidadãos sejam garantidos?

Já questionei, em outra ocasião, porque esses santos não se dispõem a perturbar a paz do prefeito, dos vereadores, do juiz de direito, do promotor de justiça e do delegado... Seriam tais autoridades imunes à perturbação da tranqüilidade?

Se já não podemos, em nome do progresso, contemplar as noites estreladas, comer fruta no pé, ter quintais com pomares e gangorras, tomar banho de rio ou roncar a barriga  ao cheiro de biscoitos de polvilho assando em  fornos de barro, que tenhamos pelo menos o direito de estar serenos dentro de casa, cada qual à sua maneira, como melhor lhe aprouver.

Não é nostalgia nem é xenofobia, mas quero envelhecer na minha cidade do interior, resguardando, pelo menos, o direito de dormir, o direito de ouvir apenas a música que eu quiser ouvir e quero ainda o direito de pedir a bênção, por muitos anos, aos que vieram antes de mim!Quero direito aos velhos costumes.

Pela Varanda






A velha rua de minério vermelho ganhou nova cara com calçamento em palelepípedos. Palavra difícil de se pronunciar quando se tem poucos anos de vida, mas a areia que viria a cobri-los ao rejunte  rebocou minha memória através dos olhos. Ardeu, é claro! Mas jamais esqueci!

Durante décadas esses blocos de concreto viram as gerações sobrepor-lhes o peso, vencer os anos e dar-lhes novas crianças que jamais viram a Rua de Belo horizonte (hoje Rua Tancredo Neves) descalçada.

Lembro-me de minha Vó Dora a ralhar com uma tropa de lenha, que ia deixando o frescor de seu esterco nos blocos recém assentados defronte nossas casas. Inerte aos seus xingamentos, as mulinhas desfilavam cagando.

Com o passar dos anos a minha casa colorida ganhou varanda e cores mais sóbrias. Poltronas confortáveis de frente para a mesma rua, já asfaltada, convidam a uma  desanuviada da mente entre a fumaça de um cigarro e outro.

Como as crianças crescem depressa! Como os carros passam depressa!Como o tempo passa depressa! Os velhos não. Os velhos passam devagar... Às vezes cabisbaixos. Sabem que a pressa é desnecessária e que, pra onde se vai tem tempo. Todo tempo do mundo!

O  sino  da capela de São Miguel emudeceu. Os galos  emudeceram nos quintais. Os quintais já nem existem, assim como os jardins da casa dos avós.

As pessoas quase não se saúdam, embora se conheçam.

Pela varanda o tempo passa imune às vontades e leva consigo as visões de outrora, mas não as lembranças...

Quem é essa moça que passa?

Nêga





Hoje me peguei a contemplar uma relíquia que adquiri, por presente,  há alguns anos: uma máquina de escrever, de ferro, pesada pra caramba, pretinha e ... Linda! Estava em companhia de outras, sucateadas pelo tempo e substituídas por modernos computadores. Funciona perfeitamente, embora não seja utilizada. Batizei-a por Nêga, num plágio descarado da musica “Meu Caro Barão”, do Chico Buarque em Os saltimbancos Trapalhões.

A Nêga despertou-me paixão à primeira vista! Não sei se era ela ou alguma prima-irmã, mas ia eu pelos 6, 7 anos, no máximo, quando me encantei por aquele equipamento maravilhoso. Apavorada com a idéia de ir ao dentista, na sede do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Barão de Cocais , fiquei a admirar  a rapidez com que as funcionárias escreviam naquilo. Minha irmã mais velha trabalhava lá. Fantástico! Pensei: quero aprender também. Ali eram ministradas aulas de datilografia que, por certo, eu desejava fazer tão logo tivesse idade para tal.

Eram tec, te tecs infindáveis intercalados com um “tlim”, que posteriormente vim a saber tratar-se do final da linha datilografada. Em poucos minutos a folha imaculada saía repleta de palavras, num encaixe perfeito, às vezes completado por um apóstrofo marcando a adequada margem do papel. Coisa linda de se ver!

A minha freqüência ao local tornou-se prazerosa por vários motivos, mas um deles eram as máquinas de escrever. Eu não as tocava, mas já chegava bem pertinho e apenas vê-las e ouvi-las enchia o meu coração de pura satisfação.

Ao lado da minha irmã trabalhava uma moça bonita, de saias curtas e pernas grossas. Era uma exímia datilógrafa. Sempre muito simpática e sorridente. Em pouco tempo eu a admirava também.

Descobri, anos depois,que a moça das pernas grossas era uma pessoa  especial não apenas por ser bonita, simpática e exímia datilógrafa, mas  por se tratar da primeira mulher a ocupar o cargo de prefeita no estado de Minas Gerais.

Ao divagar nessas lembranças, vejo que a minha relação  com a Nêga é de encantamentos recíprocos. Ela também se encanta com a minha existência! Sinto como se ela piscasse o olho pra  mim todas as vezes que a faço repetir o “tlim”que me evoca doces memórias.A propósito, não fiz o curso de datilografia.

A torre de Ismália







Pode um amor morrer? Nunca num dia assim... Diria  Bilac. Sim, aquele mesmo tresloucado que ouvia e entendia as estrelas...

Ah, não sabe quem é? Tudo bem. Talvez tenha ouvido falar em Paulo Leminski, que poetiza sobre o não acabar do amor “Amor, então, também, acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei é que se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em raiva ou rima”.

Em vão?Que seja, pois, eterno enquanto dure, segundo Vinícius de Moraes.

O fato é que hoje o amor contado foi vivido por Afonso e Constança, ainda no século XIX e estando eu na cidade matriarca das Minas Gerais, sua primeira vila, a primeira capital do estado e a cidade mais rica do Ciclo do Ouro, acompanham-me como vultos, os versos de Ismália, cantados pelo poeta solitário de Mariana, que fez de suas ruas estreitas e íngremes a própria torre prisioneira de seu amor.

O frio que espanta o riso de Constança retém-lhe o juízo. O vazio do precipício abaixo dos seus olhos abriga um lago profundo, que reflete a luz esmaecida do encantador luar. Única luz a promover sombras nos olhos embevecidos de Constança.

Um banzo do amor vivido? O assassinato da esperança de vivê-lo? A descrença na promessa  feita ao santo das aflitas casadoiras?

Constança se perdera dentro de si e pariu as rimas e tristezas dos versos de Alphonsus. Ah se a vida deixasse! Ah se pudesse viver!.

Em seu desvario Constança se desvencilha dos braços da solidão e se entrega à leveza de ser alada. Mergulha nas águas escuras que vestem o olhar de Alphonsus à procura da lua neles refletida.

Enfim, Constança decide viver.Se tivesse mais alma pra dar, daria. Isso é viver!