Regina Célia é escritora, formada em Letras, membro da AMULMIG _ Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, autora dos Livros Gangorra e Ad versos, alem de crônicas publicadas em jornais e em posts.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Os cheiros de minha terra


O cheiro doce da canjica incensa o ar. Bandeirolas coloridas tremulam ao vento frio das noites de junho em Barão de Cocais. A fogueira, a cada ano mais bonita e crepitante, ganhou um cercadinho eucalipto para evitar aglomerações muito próximas e proteger os transeuntes de quaisquer acidentes.

A panela de milho cozido convida a uma parada mais demorada, o leite ferrado da barraca da pastoral da criança lembra cozinha de avó e as cocadas do Davi... Humm são inigualáveis!

Toda região da quermesse assopra aromas diversos que despertam o paladar em todas as suas potencialidades. Os churrasquinhos, caldos de todos os tipos, sanduíches, quentão, feijão tropeiro e tudo que boca desejar está ali, em honra a São João Batista, celebrando a vida, celebrando a fartura, celebrando a prosperidade!

A festa do padroeiro expulsa os casacos dos guarda-roupas, exalam perfumes e naftalina e tornam as mulheres mais elegantes (exceção feita a algumas mocinhas de gosto duvidoso e moral em formação, com seus micro vestidos e mini mini-blusas... Horríveis em seu desengonço!).

Igreja, poder publico e privado dão-se as mãos para a realização do jubileu, que celebra o padroeiro e o aniversário da cidade.

É tempo de alegria, de acolhimento, de banda de musica e fogos de artifício! É tempo de rever velhos conhecidos, de dançar forró e reinventar a quadrilha singela dos tempos de outrora.

A cidade comemora seus séculos, a fé se revigora nos pés descalços sobre as brasas e os balões se desprendem dos dedos miúdos para alcançarem os céus salpicados de estrelas.

O pipoqueiro se aperta entre a fila de gulosos olhares e a parede suntuosa da igreja. Maçãs do amor são mordidas vagarosamente, petrificadas de caramelo. Ao longe, ouve-se a voz repetida do cantador de bingo... Mais um frango assado se despede da mesa e vai de encontro ao ganhador da rodada. É noite de São João em Barão de Cocais.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Pequeno Conto de fadas


Uma fada-madrinha era meu sonho de menina. Aquele serzinho que cintila e que tem uma estrela na ponta de uma varinha. Uma fada – madrinha que transformasse minhas velhas roupas em belos vestidos de várias saias, meus cabelos crespos em lindos cachos e que devolvesse os meus dentes faltosos, que alguma outra fada (não a madrinha) levou com a promessa de deixar alguns trocados, que nunca apareceram.

As princesas – todas – das histórias que eu amava ler - tinham uma fada-madrinha, um príncipe encantado e um final feliz.

Um dia vi num desenho animado uma fada que não era uma linda mocinha, magrinha e maquiada como as fadas dos livros que eu lia! Era uma doninha sorridente, baixinha também e gorducha... Uma simpatia e me lembrava alguém.

Naquele dia eu já não sonhava com uma fada – madrinha que devolvesse os meus dentes, que já tinham crescido novamente. Mas ainda deseja a personificação do elemento na minha vida... Não é que ela existia mesmo?

Meus vestidos não eram os mais lindos e de várias saias, mas eram os que meu pai podia comprar... meus cabelos continuavam crespos dia após dia, mas com tranças, marias-chiquinhas, bobs... (risos)

Madrinha quer dizer “mãezinha” (do latim popular matrína diminutivo do latim máter, tris - madre, mãe). Todo mundo tem ou teve uma fada - madrinha. Aquela que cuida, protege, ama, transforma, alimenta, educa, veste, conserta, prepara para a vida, apresenta , introduz aos diversos meios, alegra-se com as vitórias, entristece-se com as dificuldades, enxerga além... Ela é a fada – madrinha! A minha é exatamente igual aquela do desenho animado, baixinha, gorducha, sorridente... Uma belezura! E me acompanha desde sempre: minha mãe.

domingo, 5 de junho de 2011

Fato


Coisa desagradável na vida é engolir sapos! Engulo. Custo a engoli-los, mas é preciso... sempre afirmei que sapos, vá lá engoli-los, mas pererecas não!Ah, tenha dó! Assim já seria demais!

E a notícia correu logo. Acho até que correu lagos, pois deparei-me com uma (perereca) na parede da varanda. Olhou-me fixamente com seus olhos arregalados e eu quis gritar. Não consegui.

O adiantar das horas impedia um escândalo madrugada a dentro. Engoli, como faço aos sapos, dessa vez o grito. _ Não a perereca!

Olhei-a também fixamente e, confesso, cheguei a ver ternura em seu olhar. Troquei um sorriso com ela, que se aproximou um pouquinho mais. Talvez quisesse alertar-me sobre as advertências do Ministério da Saúde sobre os malefícios do cigarro, mas já era tarde demais. A fumaça incensava a noite e eu, até então, não lhe dera liberdades para tais comentários.

Todas as noites ela passou a estar ali, a ouvir conversas para as quais arregalava cada vez mais seus olhos.

Ensinei-lhe, certa ocasião, que é preciso cuidado ao atravessar a rua... Que não deveria sorrir para os homens, os quais, na sua crueldade, a utilizariam como isca nas pescarias... Que seus pulos são ousados demais para não serem percebidos e que o silêncio evita engasgos, pois em boca fechada, não entram moscas!

Em contrapartida, ensinou-me ela que qualquer travessia é perigosa... Que o sorriso aos homens, mesmo aqueles que não pescam, pode tornar-nos iscas...Que somente a ousadia pode fazer-nos subir pelas paredes, mas o pior foi saber que as moscas são alimentos nos interstícios das falas...

Seus ensinamentos foram de uma sabedoria sem procedência e, diante de tal constatação, calamo-nos.

No lapso de uma piscadela vi seu pulo transportá-la para o quintal vizinho e seu olhar derradeiro impregnou-me de dúvidas.

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

Sonhicídio



De parto dorido e acalentada espera precipita-se pela razão a gnose do nascimento de um sonho. Um sonho gerado a contra- gosto, concebido sem planejamento e com todos os quesitos para uma condenação natural, mas ao mesmo tempo um sonho amado muito antes de haver sido fecundado, um sonho que transcende os tempos e que vagou inconsciente e inconseqüentemente pelo cosmos por mais de uma dezena de anos até encontrar espaço onde fazer morada. E deu de cismar comigo. Logo eu que tanto me precavi? Eu que me gabava de sonhar apenas quando queria ou quando dormia? Em que momento de fragilidade vacilei a ponto de sonhar tanto? Porque minhas investiduras abortivas não funcionaram? As dúvidas retornam a cada pulsar cardíaco- respiratório como contrações... O sonho é que parece agora não querer mais nascer.

Gerado em acalentados silêncios um novo sonho adquire sinais de vida. Nem os estudiosos da psique nem a mais cortejada plêiade conseguiram diagnosticar a placenta dos sonhos e as alternativas que se nos propõem encontram-se no coração ou no cérebro. Nada há entre um local e outro...somente as dúvidas permanecem e a espera é, geralmente, um misto de dor e gozo, um prazer que faz sofrer, um doer que faz gostar...

Muitas tentativas de assassinatos de sonho são cometidas durante sua gestação. Às vezes em nome da moral, às vezes em nome do preconceito, do imerecimento ou do medo... Alguns sobrevivem . Simplesmente sobrevivem e, a certa hora, é mister que nasçam.

A noite estrelada cintila como gotas de orvalho em folhas de taioba. Singela metáfora ruralista em que não se coube verso... A lua disforme em sua minguante aparência aparece zombeteira semeando uma pálida luz azulada sobre minha face, carente de todos os benefícios dos raios solares da manhã. O ventre, incorrigivelmente saliente, não traz consigo nenhum projeto de estrela, nenhuma lua nova, crescente ou cheia, nenhuma vida futura... Os sonhos não nascem do ventre.


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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

Tarde


A tarde está bonita e ensolarada. É Domingo e poucos se atrevem a colocar os narizes do lado de fora de casa... Muitos estão tele- hipnotizados pelos programas de auditório ou pelos clássicos do futebol brasileiro. Outros oferecem ao corpo a merecida sesta impossível de ser curtida nos dias de feira. Outros, bem menos, alimentam a alma com uma boa leitura ou uma boa música em qualquer canto da casa. Eu estava fazendoa fazer as duas últimas coisas - que muito me agradam - mas surgiu, não sei de onde, um convidativo cheiro de cigarro, que resolvi acentuar.

Cigarro em uma das mãos e isqueiro na outra, acomodei-me no alpendre para fumar e pude contemplar a tarde que se exibia ao mundo... Um abandono total foi o que testemunhei nas ruas deste Domingo. Nem um carro, nem uma moto, nem uma bicicleta e nem uma pessoa transitavam. Algo deve estar acontecendo, pensei. Onde está todo mundo?

Um beija-flor interrompe meus pensamentos ao chegar muito perto de meus olhos. Isso me assusta! Vi que algumas borboletas coloridas voavam próximo às roseiras de minha mãe e que bem mais no alto, acima delas, voava um outro bando de borboletas brancas.

Tive o ímpeto de apanhar uma, pelo menos uma borboleta! Quando era criança às vezes fazia isso, embora sempre me arrependesse depois. Meu grande sonho, porém era ter - e domar - uma borboleta azul, daquelas enormes que, ao mesmo tempo em que fugia da gente estava a nos perseguir. São lindas!

Impressiona-me até hoje o fascínio que tais borboletas exercem sobre mim... Seduzem e renunciam o tempo todo! Desisti de apanhá-las e voltei a reparar que as coloridas voavam próximo às roseiras e que bem mais no alto, voava o outro bando, o das borboletas brancas. Quem pode acreditar que lagartas aparentemente feias e asquerosas transformam-se em borboletas tão bonitas? É a metáfora paradoxal da natureza!

Enquanto os homens se enfurnam dentro de suas moradas para sonhar, as borboletas deixam as suas com o mesmo propósito! Borboletas e sonhos têm vida curta... Ambos são, geralmente, lindos e frágeis e precisam de liberdade para se realizarem! Sonhos coloridos são mais próximos e alegres, já os brancos são simbolistas, nebulosos, etéreos... Não temem a fragilidade da própria existência e se aventuram em alturas pouco recomendadas.

Os sonhos - e as borboletas - grandes e azuis não se deixam aprisionar com facilidade, nos deixam extasiados por sua beleza e escapam o mais rápido que podem a qualquer tentativa de captura...

Das asas dos sonhos e das borboletas surgem as cores das tardes de domingo, que geralmente não vemos por estarmos imersos em nossos próprios sonhos.

Estes aguardam a liberdade para se fazerem realizar, enquanto as grandes e indomadas borboletas azuis nos projetam para os grandes sonhos.

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

sábado, 4 de junho de 2011

Ensaio sobre a lucidez*



A loucura é sedutora, faceira, abrasadora... Os loucos são felizes e têm a louca consciência de que o são, por isso se calam.

Não há, deveras algo mais comunicativo e filosófico que o silêncio dos loucos. Talvez escutem os murmúrios que a sanidade impede aos normais escutarem, talvez tenham o espírito embriagado nos poemas mais líricos e não se atrevem a macular a sonora afonia dos versos declamados. Os anjos o fazem e interrompê-los é pecado dos mais graves.

A loucura é sedutora, faceira, abrasadora... Os bêbados não são loucos mas buscam atormentar a mente a fim de se libertarem da loucura que é viver sóbrio. Os loucos são felizes, mas os bêbados não são e têm a louca consciência da sua infelicidade, por isso falam. Falam muito, falam alto, às vezes, baixo. É incrível como a loucura programada desata os nós da língua. Alguns, de tanto desejar, até chegam a incorporá-la, entretanto, com um agravante: falam demais.

A loucura é amiga do silêncio e dos pensamentos solitários. Desconfie dos loucos falantes. Estes não são loucos! Louco falante é o projeto do homem feliz que poderia ter sido e não foi por força da absoluta ausência de critérios na distribuição da loucura. Um pouco de loucos todos temos, mas um pouco, às vezes tão pouco que não nos permitimos enxergar sua existência . Daí, saímos por aí a falar, a beber e a filosofar numa indubitável verborragia sonora.

Os loucos, de fato loucos, incomodam mais pelo silêncio que pela falácia. Incomodam e não invejam a normalidade ensandecida dos não- loucos, enquanto estes, infelizes que são, tentam a todo custo isolar seus dessemelhantes porque são felizes.

E enquanto não nos acorrentam ao estereótipo de loucos e nos martirizamos com a expressão "isso é loucura" a cada exíguo momento feliz, este ensaio visa a propositura de uma trégua à vigília, estendendo à avidez dos desejos um convite e um brinde à felicidade. À nossa!

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

Os mistérios de Clarice *


Os homens pequenos...Que andar irritante possuem!

As pernas não acompanham a velocidade do desejo que têm de caminhar. São insistentes! A estrada quase sempre muito longa e as pernículas loucas em movimento sincronizado.

O sol projeta dos homens pequenos, grandes sombras; noutras vezes, torna-os ainda menores! Não seria o sol, talvez, a própria sombra de homens iluminados? Por que motivo para olhá-lo temos de estar mascarados? Por que o sol não se permite ser visto a olhos nus?Por que nos obriga a baixar os olhos e pender a cabeça ao invés de erguê-los?

O gato preto tem olhos amarelos cortados por uma pequena linha escura... É apavorante! Por certo o astro rei teme alguma descoberta e quando nos mascaramos sob os óculos escuros, fazemos seu jogo medíocre para que seu castigo não venha a ferir-nos as retinas... Gatos não usam óculos, nem bonés, nem guarda-sóis... por isso têm olhos de pavor, por isso são tão assustadores!

Faço parte do time dos pequenos e insistentes caminhantes.

Não sou do dia. Não gosto das sombras e não faço questão de olhar de frente o sol. Brilho por brilho, prefiro o da lua... Linda, majestosa, deslumbrantemente perfeita sobre o céu escuro. Mesmo que o corpo clame - e clama!- pelo sono, é certo que dormir, à noite, é o mesmo que perder tempo.

À noite não carecemos de máscaras para ver o céu. À noite não temos sombras que nos provocam a ilusão de repentino crescimento ou achatamento total. À noite, todos os gatos são pardos, mas nem todos os olhos amarelos. Meus olhos, tais como os de Clarice, são verdes, mas de um verde tão escuro que todos pensam serem pretos.

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

Meteorologia*


O canto da cigarra prenuncia a chuva que os meteorologistas anteciparam. A joanete da velha da esquina também já dera sinal de que as águas estão por cair. As formigas cortadeiras trabalharam toda noite, para desespero de minha mãe, que vê suas roseiras reduzidas a um amontoado de gravetos presos ao chão pela raiz. Não há dúvida de que a chuva não tarda...

Vô Joaquim preparou, cuidadosamente, em cada uma das esquinas da casa uma lata de boca para baixo, a fim de que as goteiras da casa, construída em quatro águas, possam cantarolar ininterruptamente a balada que enlouquece e encanta, variando de acordo com o humor dos seus pobres ouvintes. É um dos seus rituais prediletos.

Vô Joaquim alerta que a lua é nova, é tempo de tribuzana (chuvas com ventos e relâmpagos) e diz que acha uma belezura a cantiga das goteiras ensaiadinhas... Particularmente, acho horrível! É um tec, toc, tac irritante, que parece ser ouvido não pelos ouvidos, mas pela parte frontal superior do rosto, ou seja, olhos e testa, que é onde concentro a tensão que o barulho de goteira sobre superfície metálica e oca ( como as latas!) me provoca. Ah, quantas vezes já desejei sair sob a chuva para retirar esses objetos estrategicamente mal colocados 9ou esquecidos!

Pelas bandas do garimpo já está caindo um toró! Quase não se vê mais a serra! Em Santa Bárbara, embora o padroeiro seja Santo Antônio, quase todos já apelaram para as graças da protetora das tempestades, que empresta seu nome à cidade. As palhas bentas do Domingo de Ramos já estão à mão para qualquer necessidade ( dizem que abranda os relâmpagos).

Um vento forte faz as folhas da mangueira varrerem o telhado. Os eucaliptos da Pampulha fazem uma magnífica coreografia jazzística... A chuva chega branda e a luz nem chegou a piscar. O sol permanece com o ar de sua graça e as crianças cantam "sol com chuva, casamento de viúva!" Em pouco tempo percebe-se o mormaço ocasionado pela evaporação das águas.

Não foi preciso usar as palhas bentas... As latas de vô Joaquim nem chegaram a cantar e minha mãe, aproveitando-se da lua nova, procede à poda das roseiras, que já desfolhadas, farão emergir novos brotos roxos, repletos de botões.

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

As asas da liberdade*


Liberdade! Uma palavra que mesmo sem nos apercebermos a vemos ligada, diretamente, a um par de asas. Asas de pássaros, de Pégasus, de anjo, de joaninhas e besouros, de borboletas! Sim, de borboletas! Quão frágil e bela criaturinha se vê livre em meio às perfumosas flores.

Certa vez, Vovó Nhanhá contou-me a "origem da borboleta" para explicar a metamorfose da lagarta. "Um dia, estando a filhinha de uma feiticeira poderosa a passear pelos campos e florestas, pisoteava lindas e frágeis florzinhas sem nem mesmo observar o que fazia. Ela não tinha intenção de estragar as plantas, apenas não se importava em ter cuidado. Foi quando uma flor diferente, de um colorido raro e um perfume forte, ao perceber a aproximação da menina temeu ser pisoteada sem o direito de se defender e praguejou contra a vida, reclamando por estar presa ao chão pela raiz, dizendo que gostaria de ser livre e poder optar em ficar ou não naquele local. Queria ir e vir quando assim bem entendesse. Por um momento deus se entristeceu, pois gostava das flores e as queria feliz, como que a toda criatura sua.

No ímpeto de sua fúria, a florzinha reuniu todo o seu pólen e o lançou, como num sopro no rosto da garota, que por incrível que pareça, havia notado a exuberância daquela flor e se baixou para cheirá-la. A menina, com os olhos ardendo, saiu correndo e pedindo a ajuda da mãe, pois não conseguia parar de espirrar, fato esse que durou três dias.

A feiticeira, revoltada com o atentado da florzinha, decidiu que não queria mais nenhuma flor pelas bandas de sua casa. Após preparar uma poção mágica, transformou em lagartas todas as flores das plantas que via. Ao ver a sua obra, ria-se feliz pela vingança.
Deus, por sua vez, misericordiosamente, transformou as pobres lagartas em borboletas, dando-lhes, por fim, a reclamada liberdade de ir e vir, possibilitando-lhes aproximarem-se das flores e conviverem com elas, que eram meio que parentes da nova espécie criada."

Origem ou lenda, a liberdade passou a integrar a imagem de um par de asas, tornando-se o sonho dos homens - que não têm raízes presas ao chão -, o sonho de Ïcaro... ter asas, voar... Mesmo que em asas de aço, voar num avião, seguir o pássaro que voa... Dormir na lua... Reencontrar Teteca.

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

A altura da janela*


Perco-mewem pensamentos que retornam à minha infância passada totalmente na velha casa colorida da Rua Belo Horizonte - hoje Tancredo Neves - no Bairro São Miguel...
Apesar de simples, a casa era suficiente para acomodar os meus pais e seus onze filhos, tinha jardins, horta, quintal cheio de frutas... mas o que fazer nestes dias em que parece que o mundo vai se acabar? (Aliás, talvez nem tanta água assim, mas na minha pueril concepção, parecia ser um novo dilúvio.)

Deságuam diversas nuvens juntas, águas muitas que caem sem parar. Onde era o gramado do jardim, forma-se um pequeno lago no qual bóia um barquinho de papel, feito de folha de caderno. O dia parece eterno e do mundo parece ser o fim. Ai... que será de mim que morro de medo de relâmpagos? Essas luzes barulhentas que entrecortam o céu em meio às nuvens cinzentas, choronas e frias ?! Quisera fossem pirilampos em carreiras, voando abraçados à procura de abrigo...

Recordo-me do perigo no exato momento de um raio. Tomo assim a consciência de que vaga-lumes não se abraçam (a propósito, nem têm braços...), são vagarosos e piscam suas luzes - em dias não chuvosos - e que suas luzes são verdes!

Cada pingo que caía nas pequenas poças era como uma piorra que formava numerosos discos que iam aumentando de tamanho ininterruptamente e que, se olhados fixamente, davam a sensação de vertigem.

Tenho a nítida impressão de que estou acompanhada de meu anjo da guarda e peço um favor: que me mande um arco-iris! Daqueles brilhantes e bem coloridos que nos permitem sair de casa para brincar nos leitos secos das enxurradas e lagos recém formados pela lavagem do céu.

A demora em atender-me talvez não consista no fato de eu não merecer, mas sim porque até que todas as luzes que acendem as cores sejam convocadas a voltar à ativa- pois em dias chuvosos somente a cor cinza trabalha, as demais ficam de folga -, demora mesmo! Acredito nisso e, na ponta dos pés tento ampliar meu campo de visão para alem chuva...

Esbarro a cabeça na veneziana verde da janela (por que as janelas são tão altas?)Oh! O meu barquinho naufragou...

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

Caminha Zé Antônio*


Os muito mais jovens, por favor, me perdoem, mas aqueles que há mais de trinta anos conhecem as ruas e as pessoas de Barão de Cocais, provavelmente se lembrarão das muitas - mas muitas!- figuras históricas que passaram por esta terra... Faça uma breve pausa. Um momento de introspecção...

Lembra-se de " João Mata- Cobra" e da " Maria Funicida"? É Funicida mesmo, numa alusão à "Formicida": preparo utilizado para matar formigas... Esse apelido lhe foi conferido quando, por descuido ou obra do acaso, pisou em um formigueiro e, diante do impiedoso ataque das formigas, num acesso de fúria, atou a pisotear todas quantas lhe apareciam na reta, a qualquer hora, em qualquer lugar... chamaram-na, pois, "Maria Funicida". Pois bem, lembra-se de João Mata- Cobra e da Maria Funicida ? Eu me lembro!

Lembro-me da velha casinha de sapé na antiga rua Belo Horizonte, indo em direção ao bairro Leão XIII, onde, às vezes, eu imaginava morarem São José, Nossa Senhora e o menino Jesus... Era a outra, no entanto, a trindade lá residente. Naquela casa morava um casal que, ao que me consta, foi agraciado com o nascimento de um menino a que deram o nome de José Antônio.

Lembro-me dos cabelos sararados de Maria... sua pele muito preta e reluzente, cuidadosamente lustrada, parecendo encerada... Maria sempre seguindo o João, seu amigo, amázio, marido,namporido sei lá...

João ia à frente. Um galho de árvore à mão, quase da sua altura, que, às vezes era bengala, para amparar os predicativos debilitados adquiridos pelo avançar da idade e, por outras, era como um cetro de rei, impondo-lhe um andar austero e imperativo. Não sei quantos anos tinha, mas por certo não era novo. Na boca, nem um dente lhe dava o ar da graça... os cabelos eram todos branquinhos (até os das sobrancelhas!) e uma magreleza de fazer inveja à faquir! Ah, o detalhe que não poderia passar despercebido: As calças. Sempre amarradas com imbira.

Atrás seguia o pequeno Zé Antônio. Que será feito dele hoje, com seus 40, 41 anos? Terá, por ventura, compreendido a lição de vida ensinada por seus velhos pais? Não havia sequer uma vez que passassem, a passos largos, João Mata-Cobra e Maria Funicida, sem que se ouvisse o dueto:
Ela: "Caminha Zé Antônio! ( Com a voz aguda e alta)
Ele: "Caminha! Caminha!"(com a voz rouca e baixa)

E Zé Antônio seguia a vida a tropeçar em pedrinhas (ás vezes nem tão pequenas) na tentativa de alcançar e acompanhar os pais, que continuavam a lição diária: Caminha Zé Antônio! (...) Caminha, Caminha!(...) Caminha Zé Antônio! Caminha!

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*Texto recuperado. Escrito e publicado por mim em algum lugar e tempo passados. Atualizado para o blog.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sobre tudo


É bastante conhecida a historinha da cobra que perseguia o vagalume a fim de saboreá-lo, mesmo não sendo este parte de sua cadeia alimentar. Cansado de tanto fugir das investidas da cobra, o vagalume indaga o motivo da perseguição e a cobra responde simplesmente: “não suporto vê-lo brilhar!” E assim ta na Boca do Povo.

O brilho de alguns irrita a outros, os quais desferem todo tipo de ataque a fim de apagar o irritante brilho alheio.

Em termos de cobra, a simples menção da palavra às vezes causa arrepios. Cobra é a palavra utilizada, na boca do povo, para identificar uma pessoa sem escrúpulos, uma pessoa traidora, perversa ou enganadora.

E se Deus desse asas a cobra? Por certo ela voaria! Por certo também os dentes lhe seriam tirados, afinal, é próprio de Deus agir com justiça, assim ta na boca do povo.
É na boca do povo que colhemos as melhores pérolas de reflexão para a vida.
Na boca do povo encontramos verdades supremas e mentiras descabidas... Alguns afirmam que o que ta na boca do povo, vem da boca de Deus, mas eu tenho cá minhas dúvidas.

A mesma boca do povo que entoa hinos de louvor e glória num dia pragueja e amaldiçoa no outro! A mesma boca do povo que se cala diante de injustiças, põe-se a desferir golpes/palavras que ferem e maltratam...

Na boca do povo encontramos de tudo. Sorrisos sinceros, línguas presas. Pseudo sorrisos, língua solta. Dentes, ausências, comidas, fomes e desejos... Tudo isso habita uma mesma boca. A boca do povo!